Hotéis literários como refúgio e combate à sazonalidade
Uma oferta integrada e especializada de turismo literário permite a valorização do território e o combate à sazonalidade, de acordo com especialistas.
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Experienciar os locais onde os escritores viveram, onde se inspiraram para as suas obras e tornar reais os cenários e vivências descritos nos livros são alguns dos motivos que movem os turistas literários a determinadas regiões.
Sentem a necessidade “de tornar essa experiência real, acrescentando-lhe credibilidade”, tal como explica Ana Maria Moutinho Ferreira, coordenadora da pós-graduação em Turismo Literário da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Instituto Politécnico do Porto.
No fundo, estabelece-se uma “ligação emocional entre o leitor, o escritor e as personagens”, o que faz com “os locais e destinos literários sejam atraentes para os turistas”, de acordo com Marta Marques, coordenadora da formação contínua da Escola de Hotelaria e Turismo de Oeste – uma instituição que promoveu recentemente o projeto-piloto “Programa de Ação para o Turismo Literário”.
De acordo com a mesma, o desenvolvimento deste tipo de turismo permite não só a “preservação do património, através da transformação dos lugares literários”, como também “contribui para o estímulo da economia local”. Como explica, “este ecossistema é vasto” e não se resume apenas a livros: “abarca casas de escritores, festivais e eventos literários, rotas literárias, bibliotecas e livrarias, mas também cafés e hotéis literários”.
O Lisboa Pessoa Hotel é um dos exemplos apontados. A unidade não se insere numa das moradas de Fernando Pessoa, mas sim no local da antiga Tipografia do Comércio, onde foi impressa a revista Orpheu.
No entanto, o facto de o hotel se encontrar “na cidade de Pessoa, muito próximo de uma das suas antigas moradas, junto ao Carmo” e, para mais, na tipografia referenciada pelo escritor, permite que os hóspedes tenham “experiências autênticas, que passam muito ao lado de simples adereços”, conforme explica Dora Tormenta, Marketing & Communication Director da Art and Soul.
Por ambicionar ser “muito mais que um hotel”, o Lisboa Pessoa Hotel emerge os hóspedes na experiência pessoana, desde logo com 75 quartos e quatro pisos dedicados aos heterónimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Mas, tal como indica Dora Tormenta, o “destaque tem de ir além da decoração” – é necessário imprimir uma “dinâmica no espaço”, através de “uma agenda cultural diversificada”. Por essa razão, para além da Biblioteca Fernando Pessoa, inserida no hotel, e do restaurante e bar panorâmico Mensagem, a unidade é palco de diversas exposições artísticas, conferências, apresentações e lançamentos de livros, círculos de leitura e formações.
A experiência estende-se para a rua através da visita “A Lisboa de Pessoa”, um percurso a pé pela cidade do escritor, orientada por um especialista pessoano, Fabrizio Boscaglia.
Para que isto seja possível, Dora Tormenta afirma ser essencial “funcionar em rede”, razão pela qual estabelecem parcerias com entidades públicas e privadas como a Biblioteca Nacional de Portugal, Universidade de Lisboa, Universidade Lusófona e várias editoras.
Viajando para longe do bulício da capital, seguimos o “cenário real e ficcional” de A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, na Casa de Tormes, onde se encontra a Fundação Eça de Queiroz, tal como nos explica Anabela Cardoso, diretora-executiva da fundação.
Não se tratando de um hotel, a fundação já dinamizou “almoços e jantares queirosianos, com a recriação de refeições descritas nas obras de Eça de Queiroz”, em parceria com algumas unidades hoteleiras.
A esta atividade junta-se o percurso pedestre “O Caminho de Jacinto”, que liga a estação de Arêgos a Tormes, um caminho descrito na obra A Cidade e as Serras, bem como recriações teatrais, cursos internacionais, jornadas e conferências literárias à volta do escritor.
Dinamizar as regiões através dos livros
Seguindo para a região do Alentejo, é no alojamento Casa das Letras – Bed & Books, que os turistas encontram um refúgio literário, em Vila de Cabrela. O objetivo do responsável por este projeto, David Lopes, passou por levar os livros a um local “onde o acesso à literatura é muito escasso”.
Mais do que um espaço de tranquilidade no campo, onde os hóspedes encontram quartos temáticos e uma biblioteca generalista, a oferta “estende-se para além das quatro paredes da Casa das Letras”, com atividades que decorrem por toda a vila: seja “no campo, na casa do povo, na junta de freguesia, no salão dos reformados e aposentados da vila ou na Praça da República”.
Também aqui David Lopes refere a importância de trabalhar em parceria com os agentes locais.
Desta forma, oferecem atividades que vão desde conversas com escritores (“A Voz dos Livros”), noites de poesia e contos, lançamentos de livros e vinhos, concertos, workshops de escrita criativa, mas também “piqueniques, trilhos e sessões de ioga”. Em março, criaram “A Mais Pequena Biblioteca do País” com 48 livros, “tantos quantos os anos da democracia em Portugal”, colocados por 48 pessoas de várias profissões, incitadas a escolher o livro da sua vida.
“A literatura e os livros dão-nos uma mobilidade do ponto de vista de conteúdos muito grande e a nossa oferta é tanto mais rica quantos mais parceiros conseguimos juntar”, afirma David Lopes.
A opinião é reforçada por Marta Marques, que garante que com uma “oferta integrada e qualificada é possível valorizar o território e combater a sazonalidade turística” através deste tipo de turismo.
Aliás, Ana Maria Moutinho Ferreira refere que vários estudos demonstram que o turismo literário “pode combater de forma determinante a sazonalidade associada a outros tipos de turismo”, já que este turista “não se desloca apenas numa época do ano” – as suas estadas “são mais curtas e, por isso, menos dependentes das condições climáticas ou da disponibilidade de tempo, já que podem, muitas vezes, realizar-se em fins-de-semana”.
Para além disso, e através de um estudo que realizou, Ana Maria Moutinho Ferreira verificou que “grande parte dos inquiridos estavam disponíveis para alargar a sua estada para participar em itinerários literários” e repetir o destino, em caso de novos percursos.
Uma vez que “os turistas não podem encontrar as mesmas atividades, nem ter as mesmas experiências noutro destino”, Marta Marques defende que a novidade não se esgota após a primeira visita.
Ana Maria Moutinho Ferreira destaca ainda o papel de eventos literários como o “Correntes d’Escrita”, na Póvoa de Varzim, “Escritaria”, em Penafiel, ou o “Folio”, em Óbidos, como “bons exemplos” que fidelizam e mostram as motivações destes turistas.
O caso do The Literary Man, na vila de Óbidos, salta em todas as listas quando se procura por um hotel literário em Portugal. Telmo Faria, gerente do The Literary Man, garante que têm “muitos [hóspedes] repetentes” que, para além das várias atividades que dinamizam, entre “exposições, debates, conferências, apresentações de livros, sessões de leitura, jantares temáticos e workshops de cozinha”, procuram um local onde possam fazer “um refresh nas suas vidas”.
Também David Lopes nota esta tendência no seu alojamento no Alentejo – a de “quem vem pelo sossego e descanso, e que encontra um programa cultural que depois acompanha”, mas também dos que “vêm aos eventos, e encontram uma casa que não estão à espera”.
Os primeiros clientes que tiveram na Casa das Letras regressaram passados seis meses e, pela sua experiência, David Lopes afirma que os hóspedes têm o desejo de regressar e “trazer outros amigos, porque querem partilhar” a experiência que tiveram anteriormente com outras pessoas.
Quem são estes turistas?
O turista literário é caracterizado como alguém com elevados níveis de escolaridade e capacidade económica, com disponibilidade para gastar nos locais que visita em busca de autenticidade – um conceito partilhado tanto por Marta Marques, como Ana Maria Moutinho Ferreira.
Esta última acrescenta ainda “os jovens que buscam experiências únicas”, bem como turistas “mais velhos, com dinheiro e saúde, ambos disponíveis a alargar a sua estada para participar em roteiros literários”.
De acordo com Dora Tormenta, os hóspedes do Lisboa Pessoa Hotel representam este “nicho de turismo literário/cultural, entre escritores, artistas e académicos, alguns deles personalidades reconhecidas dos Estados Unidos, Suécia, Brasil e Itália”.
No caso da Casa das Letras, os clientes incluem uma panóplia de “famílias, clubes de leitura – que decidem organizar os eventos neste alojamento –, casais de leitores compulsivos”, mas também pessoas que escolhem o espaço “para escrever, seja um trabalho de doutoramento, de fim de curso, ou um livro”. David Lopes afirma que a faixa etária varia entre os 25 e os 60 anos, entre turistas nacionais, “franceses, espanhóis, holandeses, alemães e brasileiros”.
Por essa razão, existe a necessidade de os cursos de turismo literário abordarem conteúdos específicos, tai como literatura, marketing, storytelling e comunicação e oferta turística literária, tal como referido por Marta Marques e Ana Maria Moutinho Ferreira.
Esta última lança ainda alguns pontos de reflexão para que os hotéis possam alargar a sua atividade e, assim, abarcarem este tipo de cliente.
“Ao referenciarem os escritores nos quartos, ou criando uma época associada a escritores por todo o equipamento, as unidades podem captar este segmento turístico que inicia a sua experiência no próprio hotel, para além de aproveitar os eventos e itinerários propostos no território envolvente. Associando à experiência os cafés literários ou locais relacionados com o “turismo de livrarias”, poderão ainda conquistar os seus clientes”, termina.