“Quando ingressamos no mundo do trabalho é que damos realmente valor àquilo que é a hotelaria”
Arnaldo Azevedo assume a chefia do restaurante Vila Foz, do Vila Foz Hotel & SPA.
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Texto: Carla Nunes | Fotografia: DR
A introdução à restauração começou cedo, no restaurante dos pais em Ermesinde. Já o gosto pela área veio depois, com as primeiras experiências na cozinha e o curso na Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira. Hoje, o chef Arnaldo Azevedo está à frente da cozinha do restaurante Vila Foz, inserido no hotel Vila Foz Hotel & SPA, para o qual trouxe uma estrela Michelin. O percurso pela hotelaria algarvia e no Hotel Teatro, bem como a obtenção da estrela Michelin, marcam a entrevista com o chef que não esconde que esta “é uma profissão que nos absorve bastante e que exige muito de nós”.
Cresceu no seio de uma família que já trabalhava na restauração, neste caso com um restaurante próprio, o Toca da Formiga, em Ermesinde. Sente que esse contexto o “empurrou” para esta profissão?
Inicialmente não me passava de todo pela cabeça seguir hotelaria. Mais tarde, quando deixei de estudar e disse ao meu pai que queria ir trabalhar, e ele me disse que ia trabalhar no restaurante, aí já despertou algo. Comecei por ajudar a minha mãe na sala. Depois, comecei a achar piada à cozinha. À noite já era eu que preparava o jantar para nós, gostava de dar uma vista de olhos nas revistas e nos livros de culinária que o meu pai comprava. Foi aí que despertou o interesse em querer mais e posterior a isso, seguir a formação.
Seguiu-se o curso na Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira. Que importância teve esta formação no seu percurso?
A escola é sempre muito importante para podermos dar os primeiros passos para podermos ter uma base mais sólida. No entanto, quando ingressamos no mundo real do trabalho é que damos realmente valor àquilo que é a hotelaria, porque na escola temos uma abordagem superficial. No meu tempo havia bastante exigência, coisa que hoje já está mais ténue. Na altura só estava na escola quem realmente queria esta profissão. Hoje, não. Como o curso é mais brando, toda a gente acaba por se formar, mas depois tem o reverso da medalha: quando entram no mundo do trabalho e começam a ver que a realidade não é aquela que presenciaram no curso, então aí começam a dar os passos para trás e muitos deles desistem.
A que exigência se refere?
Essencialmente com a disciplina, humildade, rigor naquilo que se faz. A disciplina abrange a maneira como se apresentam, o rigor nos horários, e não estarmos constantemente a olhar para o relógio para ver quando é o horário de saída.
São essas as bases para singrar neste mundo?
Não são só essas, mas essas serão sem dúvida das mais importantes para se aguentar a pressão que é a hotelaria. É um regime muito pesado, acabamos por quase não ter tempo para nós, muito menos para a família, e daí das duas uma: ou temos uma preparação prévia, ou quando batemos de frente com o mundo real é um choque muito grande.
Fez depois os estágios do curso no Algarve. Foi uma mudança grande, de Norte para Sul?
Não foi uma mudança muito grande porque sempre gostei bastante do Algarve. Conseguia juntar o útil ao agradável: conseguíamos trabalhar, ter a diversão, a praia e o bom tempo. Claro que quando temos 20 anos é uma maravilha. No meu caso não seria para permanecer muitos anos. Fiz uma passagem de quatro anos e chegou.
Foi passando sempre por restaurantes de hotel?
Os primeiros anos, sim. No último ano estive num restaurante de rua, não tinha o hotel associado.
Notou muitas diferenças no serviço de um para o outro?
Bastantes. No hotel estive numa cadeia grande, no Sheraton Pine Cliffs, que no meu tempo tinha uma diversidade enorme de restaurantes abertos. Tive a oportunidade de passar por quase todos eles, o que foi bom, porque conheci vários tipos de cozinha, várias nacionalidades de chefs. Numa fase inicial, acho que foi bastante importante. Claro que um restaurante de rua tem outras condicionantes que, a meu ver, acabam por ser tanto ou mais importantes do que os restaurantes de hotel, porque temos uma realidade diferente. Não temos o suporte de um hotel por trás para pagar contas, então é importante que o que estamos a fazer seja rigoroso, porque o restaurante depende do restaurante.
A cozinha de hotel sempre foi o objetivo de carreira na restauração, ou passava por outro percurso?
Não havia um objetivo vincado. Na altura estava familiarizado com as duas situações, tanto de restaurantes de rua como de hotel. Quando cheguei ao Porto aquilo que surgiu foi um restaurante inserido dentro de um hotel. Sempre tive bastante presente que o que queria fazer e transmitir era quebrar um bocadinho aquele feitiço que existia dos restaurantes de hotel, e criar um restaurante que fosse visto como um restaurante perfeitamente normal, de rua, inserido num hotel. Tudo o resto funcionava de igual forma. Tive sorte de conseguir isso logo no primeiro projeto que abracei, que foi o Hotel Teatro. Permaneci lá oito anos e agora fiz a passagem para o Vila Foz, sendo que a administração é a mesma.
A que se refere quando fala de “quebrar o feitiço dos restaurantes de hotel”? Tem a ver com a ideia de que o restaurante é só para os hóspedes do hotel?
Há um conjunto de fatores que há uns anos inibia bastante as pessoas de frequentar os restaurantes de hotel. Primeiro, porque achavam que era demasiado caro para aquilo que serviam. O tipo de serviço não era, de todo, um serviço tranquilo, as pessoas achavam que era sempre um serviço demasiado elaborado. Na maioria dos hotéis trabalhavam sempre com buffets e nós já há 13 anos trabalhávamos com menus de degustação, coisa que não era muito normal ver-se na altura num restaurante de hotel – era mais normal ver-se num restaurante de rua, gastronómico. A ideia foi precisamente demonstrar que se podia fazer tudo isso num restaurante de hotel.
O rigor e disciplina para chegar à estrela Michelin
Chegou ao Vila Foz em 2019 e em 2021 receberam a notícia de que ganhariam a estrela Michelin para este espaço. Já tinha a estrela como objetivo quando veio para esta cozinha?
Inicialmente não, até porque quando abrimos o hotel a ideia era fazer um clássico com pratos da cozinha tradicional, puxando cada vez mais pelo serviço de mesa, devido à beleza da sala. Claro que toda a bagagem que trazíamos, e os vários clientes que fomos fazendo ao longo destes anos, quando nos vieram visitar acharam estranho, porque tivemos durante oito anos a fazer uma cozinha de autor, e de repente fazemos uma mudança radical e queríamos abrir um restaurante que nem menus de degustação tinha. Era uma culinária mais portuguesa, mas com uma mise en scène e um serviço acima da média. As pessoas gostavam, mas estavam à espera de ser surpreendidas com o facto que poder usufruir dos menus de degustação, o que nos levou a puxar a cassete novamente atrás e a refazermos aquilo que era a ideia inicial. A partir daí começamos a ter as duas coisas: à carta, alguns clássicos da cozinha tradicional, e menu de degustação. Com a pandemia o restaurante esteve fechado e quando abrimos decidi trabalhar somente com menus de degustação. Foi quando caiu o prémio, em boa altura.
O que é preciso para alcançar a estrela? Ou melhor, o que é que diria que fez a diferença, ou que passos foram fundamentais no seu percurso para chegar até à estrela Michelin?
Não há nada escrito que diga quais são os passos para se alcançar uma estrela. Acho que acima de tudo é haver bastante rigor, disciplina e trabalhar sempre com o melhor produto que nos chega. Devemos seguir o nosso caminho, mostrar aquilo que gostamos de fazer. É um trabalho diário que tem de ser feito, bastante consistente.
À medida que os anos passam, a pressão para manter a estrela é maior? Ou o nervosismo acresce mais quando se está a trabalhar para ganhar mais uma estrela?
O nervosismo é sempre constante, porque queremos sempre fazer cada vez mais e melhor. Vem de querermos ter uma consistência diária que muitas das vezes pode ser posta em causa devido à instabilidade de recursos humanos. De resto, a partir do momento em que trabalhamos com uma matéria de excelência e fazemos um trabalho extraordinário diariamente, é confiar naquilo que fazemos e ter a certeza de que aquele é o caminho correto.
Manter uma equipa estável na cozinha tem sido um desafio?
É sempre um desafio. Para já porque existem milhentos restaurantes e as pessoas muitas das vezes não estão para estar nos sítios muito tempo. Antigamente, quando se entrava para a hotelaria, estava-se quase uma vida inteira nos mesmos espaços. Hoje as camadas mais jovens já não pensam assim, já são mais saltaricos – querem estar um ano aqui, um ano ali. Claro que cabe a nós também dar boas condições para que as pessoas permaneçam o máximo de tempo possível quando assim valem a pena.
Atualmente, em Portugal, só existem restaurantes com duas estrelas Michelin. Na sua opinião, o que falta para a restauração nacional conseguir alcançar as três estrelas?
Isso é um tema bastante delicado e muito complicado. Vim da gala da Michelin em Espanha, em Barcelona, e realmente em Portugal, que é um país vizinho, não se entende porque é que ainda não há um três estrelas. Mas se calhar, quem sabe, este ano até poderá haver surpresas, visto que o guia foi separado. Claro que é sempre um guia com bastante mistério e não há ninguém que possa explicar o porquê. Só mesmo internamente no guia é que eles devem ter alguma razão para ainda não o terem feito ou por estarem à espera da altura certa para o fazerem.
O desafio de continuar a surpreender
Que cozinha trabalha no Vila Foz e no Flor de Lis?
No Vila Foz trabalhamos uma cozinha de autor, sempre com um vinco bem presente em alguns pratos das bases da cozinha tradicional. Podemos perfeitamente fazer uma cozinha elaborada sem esquecer a base de que somos feitos, que é a cozinha portuguesa. Quando trabalhamos com o público estrangeiro, é sempre muito importante as pessoas que nos visitam levarem alguma coisa da nossa história.
E no caso do cliente nacional, é possível continuar a surpreender, mesmo que a cozinha seja a tradicional portuguesa?
Sim, porque mesmo o cliente nacional acha sempre imensa piada ao facto de conseguirmos transformar um prato da cozinha tradicional em alta cozinha.
Que ingredientes não podem faltar na sua cozinha?
Azeite, ervas aromáticas fresas, peixes e mariscos estão sempre presentes, até porque a nossa carta é 90% peixes e mariscos e temos apenas um prato de carne.
Houve algum chef, ou chefs, que o tenham marcado a nível profissional?
Antes de abraçar o projeto Hotel Teatro trabalhei com um chef austríaco, o Siegfried Danler-Heinemann. Já na altura era braço direito do chef e tínhamos uma estrela Michelin. Foi uma pessoa que me marcou pela sua personalidade, pela maneira de trabalhar, pela maneira como apesar de ser estrangeiro estava em Portugal e como via o nosso produto – foi isso que o cativou e que o fez permanecer em Portugal. Ainda hoje há coisas que faço na cozinha que lhe devo a ele.
Qual diria ser o principal desafio dos chefs atualmente?
Com a quantidade de restaurantes que existem atualmente e que continuam a abrir, o principal desafio é a parte criativa, de conseguirmos sempre surpreender. Hoje a escolha é tanta em termos de restaurantes que o desafio maior é conseguirmos que o cliente que nos visita saia sempre surpreendido e que volte, acima de tudo. Quando as pessoas vêm é porque há alguma coisa que realmente marca a diferença, porque caso contrário optam por ir a outro sítio.
Que conselho deixa às gerações mais jovens que ambicionam chegar a chefs?
Acho que a ambição de chegar a chef é uma coisa que vem com o tempo, não deve ser uma ambição. A ambição deve ser: ter a certeza daquilo que se quer. Se é realmente esta a profissão que quer, tem de se dedicar, mas dedicar a sério. O problema é que hoje em dia é tão raro que realmente é quase como encontrar uma agulha no palheiro, encontrar alguém que queira dedicar-se a isto e fazer disto vida. Somos pessoas normais e como é lógico também temos de ter família, mas isto é uma profissão que nos absorve bastante. Temos de estar preparados para assumir. Ou se assume ou não se assume. Quando se assume, não podemos virar as costas e achar que os fins-de-semana ou a vida social são mais importantes. Há espaço também para essas coisas, mas é uma profissão que nos absorve bastante e que exige muito de nós. Ou queremos, ou não queremos. Se estamos na dúvida, o melhor é não arriscar.