Chef Tiago Emanuel Santos
FOTO: JORGE SIMÃO
“Os próximos cinco anos vão ser de muita resistência para quem está no panorama gastronómico dos Açores”
O chef Tiago Emanuel Santos fala da iniciativa ‘O Baco Invites’ que reúne chefs nacionais e internacionais à volta do produto regional açoriano.
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O Baco Invites’ é uma iniciativa que promove quatro jantares de degustação a seis mãos no restaurante O Baco, em Ponta Delgada, que pertence ao Hotel Ponta Delgada. Com o objetivo de divulgar a região e o produto local, em cada edição são convidados dois chefs, que se juntam ao chef consultor Tiago Emanuel Santos, para conhecerem a ilha e definirem o menu de acordo com a experiência vivida na primeira pessoa. A estreia aconteceu no passado sábado,08 de fevereiro.
A semana intensa que passou lê-se nos corpos de Tiago Emanuel Santos, Daniel Estriga e Romuald Fassenet. São três horas da tarde de domingo, e o sol que irrompe pelas portas do pequeno jardim interior pousa delicadamente sob os semblantes imóveis dos chefs que se refastelam nas cadeiras e sofás do bar do Hotel Ponta Delgada, na ilha açoriana de São Miguel. Os seis olhos estão cerrados e o silêncio é a voz do diálogo possível que enche a sala, num exercício de meditação individual que expressa o resultado coletivo da experiência que culminou na noite anterior e que denuncia o cansaço de sete intensos dias. ‘O Baco Invites’ sentou, no passado sábado, 50 pessoas no restaurante pertencente à unidade hoteleira, para perto de quatro horas de degustação dos sabores que compõem a medula açoriana. O ‘mise en place’ começou uma semana antes, altura em que o jovem português que divide a vida entre o Dubai e Bicesse, Daniel Estriga, e o já experiente francês Romuald Fassenet, aterraram na ilha para mergulhar nos costumes e sabores da região. Sem menus definidos nem ideias pré-concebidas, e com as mentes desprovidas de imposições, o trio seguiu um roteiro delineado pelo chef consultor do restaurante açoriano. Pelo caminho, cruzaram-se com pescadores, produtores de queijo, entraram em tascas e habituaram-se ao sotaque indissociável dos locais que lhes foram contando a história que tecem a génese de cada ingrediente. Entre as ideias disruptivas de Daniel Estiga, o método clássico de Fassenet e o conhecimento profundo da matéria-prima de Tiago Emanuel Santos, o menu alinhou-se num desfile de influências do arquipélago que culminou numa mostra gastronómica ímpar.
Tiago Emanuel Santos é o fio que une todas as pontas para que a iniciativa veja a luz do dia e explica, em entrevista à Publituris Hotelaria, o processo de construção da experiência.**
Quais foram os aspetos que impeliram a escolha dos dois primeiros chefs para ‘O Baco Invites’?
O critério foi simples. Em primeiro lugar, escolhi pessoas que fazem também aquilo eu faço, à escala portuguesa e local, no seu território e que são também embaixadores de grande qualidade.
Já tinha os nomes na cabeça?
Completamente. O Romuald por uma razão muito óbvia, por ser uma referência internacional da gastronomia francesa clássica, é de uma região riquíssima em produtos de elevada qualidade e porque, além de um grande cozinheiro, é também um grande formador de pessoas. Tinha as características necessárias para a ilha e para dar à nossa equipa aquilo que fazia falta. O Daniel [Estriga] é também uma pessoa que conheço há algum tempo e, portanto, trazia um conjunto de características muito similares às minhas, de disrupção, de criatividade, de ambição pessoal e profissional e fazia sentido tê-lo na nossa equipa para contactar com essa realidade. O ‘Baco Invites’ é muito isto, trazer uma perspetiva diferente, completamente singular de cada um de nós para um evento sem trapézio e sem rede. Ninguém sabe o que é que vai fazer.
Essa é premissa para todos os jantares de ‘O Baco Invites’?
Sim. As listas de compras foram decididas na quinta-feira à noite. O jantar realizou-se no sábado [dia 08]. Na sexta-feira comprámos os produtos de manhã e houve pouco tempo de produção e isso também fez com que trabalhássemos um pouco mais do que é normal no dia-a-dia. Mas também permite que toda a gente possa ter uma criatividade limpa e que possa chegar aqui com a visão objetiva daquilo que vai absorver durante a semana. Isto, do ponto vista físico e mental, para mim, é um pouco mais extenuante porque tenho de fazer um conjunto de programações que não sejam muito pesadas para os convidados mas que, ao mesmo tempo, sejam diversas o suficiente para lhes mostrar a heterogeneidade desta ilha em particular e para os desafiar a fazer coisas que são fora das suas área de conforto. Foi giro ver que o Daniel e eu acabámos muitas vezes por mudar o rumo do nosso prato em função daquilo que era a capacidade técnica de execução de uma técnica nova ou de uma forma diferente de ver o produto. O Romuald, muito mais experiente do que nós, é muito mais sistémico.
Foi fácil concretizar este menu extenso e complexo, alinhando os três estilos tão díspares e tendo como base esta não programação?
Penso que sim. Mesmo quando os desafios são mais difíceis consegue-se chegar a uma solução. Um bom exemplo foi o caso da sobremesa. A transição da sobremesa do Romuald [gelado de banana e maracujá com ananás] para a minha [gelado e torta de batata] não era fácil, e não era fácil harmonizá-la com vinho. Optámos por uma solução que recaiu num chá verde local, servido fresco, que ajudou a fazer um corte completo entre aquilo que era a pastosidade e a intenção do prato do Daniel com a frescura do prato do Romuald e preparar a sobremesa que vinha a seguir. É fácil quando temos alguma experiência e quando trabalhamos com pessoas com tanta capacidade. E é isso que vamos ver nos próximos convidados também, pessoas com muita fome de Portugal, gente que quer ver o nosso país e quer conhecer o nosso território, que já o trabalha de alguma forma e que vai ser um embaixador dos Açores. Esse é o princípio: criarmos pequenos embaixadores de pequenas regiões portuguesas e levá-las para o mundo.
Como foi desenhado o processo?
Um dos desafios foi conseguir, em quatro ou cinco dias, dar um conhecimento minimamente lato daquilo que é a realidade da ilha mas não ser, ao mesmo tempo, muito intrusivo fisicamente e psicologicamente com os convidados. Este é um equilíbrio que não é fácil. Houve dias em que saímos às oito da manhã do hotel e regressámos à uma da manhã. Começámos por visitar produtores, nomeadamente de peixe, fomos à lota, perceber quem são as pessoas e de que forma trabalham, o que é que fazem e como é que produzem. Levámos os chefs a restaurantes tradicionais com pessoas que cozinhas há mais de 50 anos e que fazem cozinha regional pura e dura,e isso incluiu ir comer a casa de um pescador. Verificar como é que as pessoas vivem, perceber a cultura do povo para quem estamos a cozinhar e depois absorver aquilo que são os produtos e esta era a parte mais fácil porque os produtos são muito bons. O meu trabalho foi o de um narrador da região e foi explicar, no fundo, os costumes e a cultura. É um trabalho que , intelectualmente é difícil, porque temos de colocar os outros a ver o território com a mesma visão que nós temos. E a minha visão é muito apaixonada pela ilha e faz com que eu tenha de passar isso.
Os pratos surgiram à medida que foram conhecendo os produtores ou resultaram de um processo de retrospeção no final desta viagem?
São três pessoas diferentes e, portanto, houve processos diferentes. Eu, que estou mais habituado à ilha, quis sair da zona dos meus pratos de conforto e olhar para os produtos de uma forma diferente.
O Tiago partiu em vantagem, por ser já um conhecedor dos Açores. Deu um passo atrás e deixou-se levar pelos instintos do Daniel e do Romuald?
O facto de partir em vantagem com muitos produtos que já conheço, obrigou-me a querer trabalhar com outros com os quais não trabalho normalmente. Foi o caso da morcela de lula ou da sobremesa que teve como base as batatas. Não gosto de me repetir nem de fazer coisas que já pertencem ao ADN do dia-a-dia e tentei mitigar a vantagem que tinha. Senti que o Romuald teve aqui um processo diferente do Daniel. O Daniel esteve mais livre, com uma criatividade mais aberta. O Romuald, mais num estilo francês, encontrou um conjunto de produtos que deram aso a receitas que ele estava já habituado a fazer mas com matéria-prima de outro território. Foi interessante juntar estes três processos criativos, cada um com a sua forma de ver.
Esta mistura entre o contemporâneo e o clássico foi propositada?
A cozinha do Romuald é bastante clássica e a do Daniel é bastante disruptiva. No próximo evento vai acontecer o mesmo. Teremos um chef de uma cozinha extremamente clássica e um outro chef mais contemporâneo e é interessante este choque de visões. Para o cliente é também interessante perceber que existem três formas de ver os Açores e os produtos. Claro que se analisarmos isto de forma geométrica, existem 70 mil formas diferentes de olhar para os produtos e isso faz com que a internacionalização dos produtos açorianos tenha um potencial gigantesco em vez de apostarmos apenas na regionalização.
Qual foi o maior desafio?
A execução não foi fácil, foi exaustiva mas faz parte do processo. Nesta semana aconteceu muita coisa, tentámos testar muitas realidades e absorver muito. Mas sinto que esta junção foi fácil, não senti dificuldades.
Qual foi o prato que mais o surpreendeu?
Os meus pratos preferidos foram os meus [risos]. Achei giríssimo o Daniel pegar numa coisa que nunca provou [Sopa do Espírito Santo] inspirado pela narrativa que eu lhe contei e fez um caldo soberbo. Considero divinal a utilização e execução do Romulad de produtos clássicos da cozinha dele.
Estou agora a descobrir quem fez o quê. No jantar, não foi assumida individualmente a autoria de nenhum prato…
E foi essa a ideia porque todos os pratos tiveram as mãos de todos. Quando estamos no processo de conceção e experimentamos as criações uns dos outros, vamos dando sugestões entre nós e aí o prato deixa de ser só nosso e passa a ser dos outros. A visão de cada um imprime uma nova expressão nos produtos e isso mostra o espaço que existe para crescer na ilha do ponto de vista gastronómico e da hotelaria.
A premissa de elevar o produto açoriano é assumida como base deste conjunto de jantares. Assumindo-se como um apaixonado pela região, qual é o seu propósito com o ‘Baco Invites’?
Há uma equipa muito grande a trabalhar nestes eventos. Eu sou apenas o tonto que manda as ideias para o ar e que acha que há determinadas coisas que são realmente importantes. Esta semana dizia, em jeito de brincadeira, que estamos a fazer serviço público a partir de uma entidade privada. Os custos de trazer os chefs foram suportados pelo hotel [Hotel Ponta Delgada], desde o alojamento, a alimentação, o transporte na ilha e as passagens aéreas. Estamos a fazer isto não em função do retorno do jantar, porque do ponto de vista financeiro não é minimamente rentável para conseguir cobrir as despesas de recebermos estes chefs. Fazemos isto com uma consciência grande daquele que é o potencial do território, daquela que é a retribuição que temos de dar ao território que também nos dá tanto a nós. Se conseguimos ter sucesso no restaurante O Baco e no Hotel Ponta Delgada, fazemo-lo porque temos uma região que, de facto, nos permite usufruir disso. No jantar, emocionei-me, porque senti, pela primeira vez, que o povo açoriano me acolheu e acolheu aquele que era o nosso trabalho. O nosso objetivo é expor o que fazemos, mas não no sentido mediático. Há muita gente a fazer trabalho sobre os Açores, como o Miguel Castro e Silva que fez um trabalho excecional nos anos 90, ou chef Cláudio Pontes. Felizmente tenho tido a sorte de ter um pouco mais de projeção e das pessoas me ouvirem um pouco mais. E quero que a região consiga ser divulgada por aquilo que é e não apenas como um sitio muito bonito, onde a comida é bem ou mal passada.
Um dos seus próximos passos visa a reformulação das restantes cozinhas dos hotéis do grupo Ciprotur.
Há muito espaço para fazer melhor nos Açores. E não estamos só a falar de São Miguel, mas das nove ilhas. Lancei o desafio ao grupo por considerar que há espaços que têm margem para comida comunitária e familiar, outros que considero que têm de apostar em cozinha de autor. Temos de começar por algum lado e o primeiro passo tem sido o restaurante O Baco, onde me sinto mais confortável. Essa é uma mudança paradigmática que acho que é gigante. Outro aspeto fundamental é apostar na formação. Por exemplo, houve uma cliente que fez uma refeição n’O Baco e que fez o reparo de que gostava das lulas mais pequenas. E o tamanho mínimo legal de lula permitido nos Açores foi aquela que comprámos. Aí, apostei no feito pedagógico e fui à sala explicar este facto e dizer-lhe que, se ela encontrasse outra mais pequena então estaria a comer lula congelada que não é regional. A desinformação reina de tal forma, que achamos que há carne suficiente para vender, que o atum é vermelho cor de beterraba, ou que as lapas são todas dos Açores e são legais o ano inteiro. E que há lagostas durante todo o ano e que não vêm da Mauritânia. Há um conjunto de desinformações que alimentam a desvalorização do produto dos Açores e esse é outro passo. Os próximos projetos têm também de seguir esta tónica de serem reconhecidos como projetos que apoiam a economia local, que apoiam os parceiros locais.
Há talentos e oportunidades na ilha para que se possa elevar a gastronomia açoriana para um patamar de reconhecimento internacional ou este é ainda um caminho longo?
É um caminho longo e que vai ser ainda bastante moroso e duro. Eu próprio sou alvo de muita ostracização por parte de alguma comunidade de pessoas que se chamam ‘gastrónomas’, por ser de fora [da ilha].
Porquê?
Se o prato é de peixe, tem de ser feito de uma determinada maneira. Se é bife à regional tem de ser de outra. Se tentas fazer alguma coisa que possa ser mais contemporânea, se a visão é mais atualizada e apelativa, do ponto de vista visual, estético e técnico, é considerado um sacrilégio que está a desvirtuar completamente aquela que é a tradição da região. Pessoalmente até não faço muito isso e respeito aquilo que é o produto regional e a forma de ser da região. Existem algumas vozes da desgraça que são contra algumas influências externas, principalmente continentais. Tem sido um caminho com muita dificuldade. Os próximos cinco anos vão ser de muita resistência para quem está no panorama gastronómico dos Açores e que quer fazer algo diferenciador. Mas depois vamos colher todos os louros deste trabalho que estamos a fazer e vamos poder olhar para trás e recordar de que fomos nós que começámos e que arrancamos com esta intifada sobre o produto regional.
Referiu o respeito que tem pelo produto e pela região. Onde se enquadra a disrupção nesta tónica?
Respeitar o produto não significa que o tenhamos de usar da mesma maneira que há 50 anos. Habituámo-nos a comer o bacalhau salgado e seco porque não havia outra forma de o comer. Agora há a possibilidade de o comer fresco. Se é bom ou não, é discutível. Mas existem evoluções que permitem apresentar os produtos de forma diferente. Respeitar o produto é olhar para ele, perceber o porquê de ter sido feito assim durante décadas e perceber a importância social à luz da época e isso é reinterpretar de uma forma contemporânea. A resposta é sempre a heterogeneidade. A solução nunca é afirmar que há um que está certo e outro que está errado. É o respeito mútuo. Sushi nos Açores faz todo o sentido, não faz sentido é sushi com salmão. Pizza também faz sentido, mas não com pepperoni. Passam-se constantemente atestados de incompetência a quem trabalha o produto de uma forma diferente.
*Saiba mais sobre a iniciativa ‘O Baco Invites’ na próxima edição da revista Publituris Hotelaria
**A Publituris Hotelaria é media partner da iniciativa ‘O Baco Invites’ e esteve presente em Ponta Delgada a convite do Hotel Ponta Delgada.